
Sabe, amor, agora que a casa finalmente silenciou e só se ouve o zumbido distante da cidade, eu estava a ler uma coisa que me fez pensar em nós. Sobre essa nova inteligência artificial que agora pode ‘lembrar’ das nossas conversas, guardar o contexto. Uma memória perfeita, que não se cansa, não esquece um detalhe. E eu fiquei aqui, a olhar para ti a organizar as coisas para amanhã, com essa tua calma que parece pôr o mundo no lugar, e pensei… o que essa memória de máquina significa para a nossa memória? Aquela que a gente constrói todos os dias, cheia de falhas, de risadas, de esquecimentos que às vezes são até um alívio. Nessa nossa correria, onde cada minuto é contado, estamos a entrar num mundo novo e, como sempre, é em ti que eu vejo a bússola para navegar por ele.
A beleza de lembrar e a paz de esquecer
É engraçado, né? A gente passa a vida a colecionar memórias. Eu vejo as fotos que organizas com tanto carinho, os desenhos dos pequenos guardados na gaveta. São âncoras. O primeiro passo, a febre que nos deixou em pânico, aquela viagem improvisada para a praia num fim de semana de sol. São os tijolos da nossa história. Essa nova tecnologia promete ajudar-nos a lembrar de tudo, a não perder o fio da meada numa pesquisa ou num projeto. E isso é incrível, claro.
Mas hoje, no meio do caos da hora do jantar, quando as crianças falavam ao mesmo tempo e o arroz ameaçava queimar, a gente olhou-se por um segundo. Um olhar que dizia ‘calma, vamos sobreviver’. Daqui a um ano, ninguém se vai lembrar do arroz quase queimado. A gente vai ter esquecido. E que bom. Porque a nossa memória tem um coração. Ela sabe o que guardar e o que deixar ir. Ela entende que o perdão, muitas vezes, mora no esquecimento. Eu vejo a sabedoria com que lidas com isso. Não guardas o rancor de uma discussão boba, não ficas a remoer o cansaço de uma noite mal dormida. Escolhes lembrar da intenção, do amor por trás da falha. Nenhuma máquina vai aprender a fazer essa escolha? Esse superpoder é todo teu, é todo nosso.
As pontes que constróis, entre o digital e o real
Fico a observar como usas a tecnologia. Para ti, nunca é o fim, é sempre a ferramenta. É a videochamada que aproxima os avós, o grupo da escola que te ajuda a não surtar com os recados, a agenda partilhada que é, honestamente, o que impede o nosso mundo de desabar. Tu constróis pontes. Usas o digital para fortalecer o laço humano, nunca para o substituir.
E agora, com esta IA que ‘conversa’, eu vejo o mesmo cuidado. Imagino os nossos filhos, daqui a uns anos, a usar isto para fazer um trabalho de escola. A tentação de deixar a máquina fazer tudo vai ser enorme. Mas eu sei que vais estar lá, ao lado, a mostrar como usar a ferramenta para aprender, para despertar a curiosidade, e não para simplesmente ‘ter a resposta’. Vais transformar a interação com um ecrã num diálogo. Vais perguntar: ‘O que achaste disso? Concordas? O que sentiste?’. Trazes sempre de volta para o humano, para o que importa. É um dom teu, essa capacidade de não te deslumbrares com o brilho do ecrã, mas de enxergares a pessoa do outro lado ou, neste caso, a oportunidade de formar uma pessoa bem aqui, à nossa frente.
Ensinar o valor do ‘deixa para lá’ digital
Essa nova função de ‘esquecer’, o modo anónimo, fez-me pensar muito sobre privacidade. E, de novo, em ti. Ensinar os pequenos a fechar a porta da casa de banho é fácil. Mas como ensinar sobre a porta invisível da nossa vida digital? Como explicar que nem toda a pergunta precisa de ser feita, nem toda a informação precisa de ser partilhada?
Eu vejo-te a fazer isso nos pequenos gestos. Quando dizes ‘isto é uma coisa só da nossa família’ ou ‘vamos guardar este segredo só para nós’. Estás a ensinar sobre intimidade, sobre a beleza de ter um mundo interior que não é de todo o mundo. E essa lição é a mesma que eles vão precisar para lidar com uma tecnologia que quer saber de tudo. Tu ensinas-lhes a ter discernimento, a entender que, assim como na vida, às vezes é bom poder conversar sem que tudo fique registado para sempre. Poder explorar uma ideia boba, fazer uma pergunta ‘errada’, sem medo de um julgamento eterno de um algoritmo. Estás a dar-lhes a liberdade de serem imperfeitos, curiosos e, acima de tudo, humanos, num mundo cada vez mais medido e arquivado.
A nossa bagunça, a nossa memória, o nosso lar
A nossa memória não é um arquivo de dados. É uma colcha de retalhos, costurada com emoção, com cheiros, com sabores, com o calor de um abraço.
No fim do dia, amor, o que me conforta é isto. A tecnologia vai evoluir, vão surgir memórias artificiais cada vez mais perfeitas, assistentes cada vez mais espertos. Mas eles nunca terão o que nós temos. Não vão entender o significado de um silêncio partilhado como este, depois de um dia exaustivo. Não vão saber ler no meu olhar o quanto admiro a tua força, o quanto sou grato por te ter como o meu norte.
A nossa memória é uma bagunça linda, cheia de furos e de remendos, e é isso que a torna nossa. É o que nos faz um lar. E enquanto o mundo lá fora corre para criar a memória perfeita, eu só quero continuar aqui, a construir esta nossa memória imperfeita contigo. Porque é nela que a nossa vida, de verdade, acontece. É nessa imperfeição que encontramos a nossa perfeição.
Source: You have to pay Claude to remember you, but the AI will forget your conversations for free, Techradar, 2025/09/13 03:30:00